top of page

Terapeuta Cansada atende Calixto

1 de dez. de 2024

Terapeuta Cansada atende Calixto

de Luiza De Rossi


A Terapeuta está em seu consultório. Ela tem uma expressão de cansaço. Mastiga alguma coisa, bebe café… Quando vai acender um cigarro, surge o paciente para ser atendido.


Calixto: Olá, boa noite, com licença.

Terapeuta: (Surpreendida) Oi, oi, vai entrando, chegou na hora. (Ele entra e senta) E então, como vão as coisas?

Calixto: Eu vou bem, doutora… (Pausa) Na verdade, hoje eu vim falar sobre a Paula. 

Terapeuta: Ah, sim, a sua namorada. Ela tá bem?

Calixto: Tá… (Receoso) Bom, eu vou direto ao ponto. Desde que a gente experimentou abrir a relação, no carnaval, as coisas mudaram bastante.

Terapeuta: (Irônica) Imagino.

Calixto: Pois é… E olha que a gente leu muito sobre não-monogamia, sobre a desconstrução das reações que sustentam o patriarcado, sobre compersão... Falando nisso, conhece o conceito de compersão?

Terapeuta: Hum? Sim, claro, compersão. Pelo que eu sei, a maioria das pessoas acredita que não existem ciúmes entre casais que vivem relacionamentos abertos. Porém existe, afinal, somos humanos. E a superação desses ciúmes, transformado em uma alegria genuína por ver seu companheiro feliz com outras parceiras, seria a tal compersão.

Calixto: Exato! (Blasé) Eu sabia que tinha vindo ao lugar certo.

Terapeuta: (Rançosa) Ok, Calixto, mas voltando. Me fala da Paula, o que aconteceu?

Calixto: Tá, resumindo, desde que eu comecei a me envolver com a Natália, a Paula ficou estranha. Mais carente, manda mensagem toda hora, fica querendo sair, fazer coisas, viajar. Mas a gente tá junto há um tempão, então a relação já tá meio morna, né? Natural.

Terapeuta: Ahm… Só pra eu entender: a Natália é o seu vínculo mais recente?

Calixto: Sim! A Naty é maravilhosa, ela é linda, empoderada, fala vários idiomas, é influencer, tem mais de 100 K de seguidores. Então, é óbvio, ela não tem muito tempo pra mim. Mesmo assim, ela me convidou pra uma imersão sobre produção de conteúdos pras redes sociais, que vai rolar na fazenda dos pais dela nesse fim de semana. E o mais incrível é que a minha pesquisa de pós-doutorado tem tudo a ver com os temas do canal dela.

Terapeuta: Huum… Legal. (Pausa) Mas, o que a Paula pensa sobre tudo isso?

Calixto: Aí que tá… O problema é que a Paula também quer viajar no mesmo final de semana. Ela até reservou a pousada Riso aos Montes pra gente. Eu gosto de ir lá com ela, é bom. Mas é que quando a gente tá no começo de um vínculo novo, assim, como eu tô com a Naty, dá frio na barriga, tem aquele fogo, aquela paixão! Então fica difícil conciliar… Eu só queria que a Paula entendesse.

Terapeuta: Compreendi. Você quer que a Paula tenha compersão.

Calixto: Isso! Exatamente. Como você é boa, hein? Sempre acerta no alvo.

Terapeuta: (Irônica) Ah, muito obrigada. Mas olha aqui Calixto, você vai ter que me desculpar, porque esse padrão de ter vários relacionamentos simultâneos, ao meu ver, é fachada para esconder uma tendência muito comum para a procrastinação, entende?

Calixto: Como assim? Eu nunca me considerei um procrastinador.

Terapeuta: Eu vou te explicar: essa história de começar um novo relacionamento, sem ter terminado o anterior, é uma espécie de fuga da possibilidade de se comprometer de verdade. Ou seja, vocês vão acumulando novos relacionamentos para não se envolver profundamente e não assumir, de fato, nenhum deles. Compreende?

Calixto: (Pensativo) Eu nunca tinha pensado dessa maneira.

Terapeuta: (Vai se irritando) Aliás, existem muitos tipos de procrastinação, eu tô cansada de ver isso aqui no meu consultório. Inclusive, eu fiz uma lista dos tipos mais comuns (Desenrola uma lista gigante. E a cada item que lê, fica mais impaciente). Tem gente que procrastina por perfeccionismo, porque não sabe que feito é melhor que perfeito. Tem o do tipo sonhador, que vive no mundo da lua. Tem o criador de crises, que tá sempre problematizando tudo, é um inferno. Tem o procrastinador ocupado, que pega mil coisas pra fazer e não dá conta. E, por outro lado, tem o evitativo, que não assume responsabilidade por medo de errar ou de ser julgado. (Exausta) Tá vendo, Calixto? Tá vendo como a geração de vocês tem um problema sério com comprometimento?!

Calixto: Impressionante… Porque, na verdade, eu sempre me considerei um cara comprometido.

Terapeuta: Ah, você considera? Então eu vou te dizer o que é compromisso mesmo. É…  (Procura um exemplo) É, é levantar o bumbum da cadeira gamer e ir lá, presencialmente, lutar pelas pautas sociais, aqui ó, no gogó… Ficar só sentado clicando em abaixo-assinado pra salvar a amazônia pelo celular é fácil, qualquer um faz.

Calixto: Sim, eu sei. É por isso que, há alguns meses, eu integro o CME -  Coletivo Machos Engajados, onde juntos compomos os cantos que iremos entoar nas próximas ocupações da reitoria! (Empolgado, ele canta uns versos, dança e simula tocar um tambor).

Terapeuta: Tá bom, tá bom, tá ótimo! Eu estou torcendo por vocês. Pode me mandar os links dos abaixo-assinados que eu participo e até compartilho. Só não vou apoiar financeiramente porque tem muito paciente que tá me devendo, sabia?

Calixto: (Dá uma risada nervosa).

Terapeuta: Ah, falando nisso, não esquece de fazer o meu pix, tá? Das consultas passadas. (Pausa) Eu te conheço, Calixto, eu sei que você vive se escorando na mulherada… Você se enrola, se enrola e nunca paga nada, né? Pra cima de mim não, viu? Faz o meu pix, porque, com essa aqui, você já tá me devendo seis sessões!

Calixto: Claro, eu faço hoje, sem falta! (Pega o celular) Qual é a chave mesmo?

Terapeuta: (Indignada) Meu telefone. E só mais uma coisinha pra você ficar pensando durante a semana. Uma coisa que está faltando nos seus relacionamentos: re-ci-pro-ci-da-de. Sabe o que é?

Calixto: (Convicto) Com certeza, é quando duas pes…

Terapeuta: (Furiosa, gritando) Não precisa responder! É uma pergunta retórica. Eu sei que você sabe. Na teoria, você sabe. Só que na prática, definitivamente, não sabe. (Tentando ser didática) Mas não tem problema, a terapia tá aqui pra isso, pra você aprender, pra você mudar. Então eu vou te passar um exercício prático: sai daqui agora e vai direto para uma pracinha, dessas infantis, tá? Parquinho. Quando chegar lá, senta numa gangorra, sozinho, sem ninguém do outro lado. E tenta fazer o brinquedo funcionar. Aí você vai entender o que é a reciprocidade, ou melhor, a falta dela. Tá? Agora vai, vai embora, vai logo. E faz o meu pix! Tchau! (Ele sai às pressas.)


Luiza De Rossi

Atriz, iluminadora cênica, produtora cultural e mãe do Ian, integra o grupo artístico Teatro Por Que Não? (TPQN) desde 2010. Bacharel em Artes Cênicas e mestranda em Educação (UFSM), também contribui na gestão do Espaço Cultural Victório Faccin (Santa Maria/RS). Além disso, ministra turmas e colabora nas montagens do Curso de Teatro do TPQN, desde 2014. Como atriz, integrou diversos espetáculos teatrais: “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”; “Amores aos Montes”; “Serena Procura um Planeta”; “Say Hello para o Futuro”; “Contos de Folha e Flor”, dentre outros. Assim, apresentou-se em várias cidades gaúchas, como também, em São Paulo – SP, Curitiba – PR, Blumenau – SC, Goiânia – GO, Tabasco - México, Lisboa e Sintra - Portugal.

55 98112.7486

Rua Duque de Caxias, 380 - Bairro Rosário, Santa Maria - RS, 97010-200

Espaço Cultural Victorio Faccin

Entre em contato

bottom of page